terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Novo



Esse adjetivo nos atrai de uma maneira irresistível. O carro novo, o trabalho novo, o amor novo. Novo! Nos colocamos diante de um novo recomeço. Uma nova chance de fazer diferente, de não incorrer nos mesmos erros que cometemos com o velho carro, o velho trabalho. O velho amor então... mas, inexplicavelmente, tropeçamos nas mesmas pedras que nos derrubaram no velho caminho.

Se pararmos para refletir, veremos que não é tão inexplicável assim que nos atrapalhemos com os mesmos problemas. Isto porque a mudança externa, a mudança de objeto, não abrange a mudança de sujeito. O veículo é novo, o emprego também, novo o relacionamento. Mas o agente não muda. Adentramos ao novo transferindo a este a responsabilidade por mudanças que deveriam ocorrer de dentro para fora. O essencial, que deveria mudar, persiste. Com os mesmos vícios irrompemos ao novo.

Não é surpreendente que erremos mais uma vez. Imagine um belo jarro ao qual deitamos vinho intragável. Muda-se o rótulo, renova-se o vasilhame, mas o conteúdo continua o mesmo. Eis aí o que deveríamos compreender: de nada nos adianta mudanças externas se nós não mudarmos. E como é difícil abandonar os velhos hábitos. Como é difícil assumir uma outra postura diante das coisas.

Em contrapartida ao novo que se avizinha, deveríamos oferecer o nosso novo. Renovo, na verdade. Vamos romper com os velhos preconceitos. Quebremos as velhas algemas que nos aferrolham a mente e a alma. Deixemos de lado os velhos posicionamentos infrutíferos e retrógrados. E assim nos reapresentemos. Aprendamos de novo, da maneira certa, a forma correta e precisa, livres da cegueira causada pelas nossas imperfeições.

Talvez seja querer demais. É exigir muito em face da confortável possibilidade de nos mantermos inertes, no comodismo de nossa inação. Me “inclua” fora dessa, dirão alguns. E sem nos limparmos, ainda senhores e orgulhosos de nossas imundícies, vestimos a nova roupa e disfarçamos o mau cheiro com algum odorante artificial. Explosões de cores resplandecem no céu. Sobre o velho e sulcado rosto, nova máscara reluz.

...





quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

Natal!

Então é natal, e o que você fez? Creio que o mesmo que todos os anos: família, amigos, trabalho, estudo, mais família, mais amigos, mais trabalho, mais estudo. Provavelmente aquele grande plano que você tinha para esse ano ficou para o que vem. Aquelas atitudes que sempre prometemos para depois do ano novo vai ficar para o próximo, mais uma vez. E assim vamos empurrando.

O natal é uma das datas mais intrigantes porque é, na verdade, uma colagem de várias tradições. Um sincretismo de cristianismo e tradições pagãs. Uma montagem que subsiste com o apoio incondicional do consumismo. E há de ir longe.

A data, vinte e cinco, é o nascimento do filho de deus. Assim mesmo, com letra minúscula, porque esse filho do qual falo não é o que veio a se tornar o Cristo. A festa do Natal Cristão surgiu por paralelismo com as solenidades pagãs de Mitra, cujo nascimento era comemorado no dia 25 de dezembro. Essa data marca o início do solstício de inverno do hemisfério norte, que é o solstício de verão, no hemisfério sul. Na Bíblia mesmo, não existe nenhuma referência a dia, mês ou ano no que se refere ao nascimento de Jesus, o Cristo.

Assim, o nosso Natal é a recepção pelo cristianismo de uma data pagã, a do nascimento do filho do deus Aura-Mazda.  Quando o império Romano adotou o Cristianismo como religião oficial, precisavam preencher as lacunas dessa religião e dar uma peneirada nos evangelhos, que eram para mais de cem. Preferiram completar a história do Cristo com algumas pitadas de paganismo. Até que não ficou de todo ruim. Mas e o bom velhinho?

Esse senhor bonachão de barbas brancas se tornou popular em uma propaganda da Coca-cola em 1931, mas a figura obesa e barbuda de roupas vermellhas aveludadas é de criação de um cartunista chamado Thomas Nast, que a publicou pela primeira vez em 1886 na revista Harper’s Weeklys. Antes disso, era representado pela figura de um bispo, em referência a São Nicolau. E a roupa era verde.

Hoje, a maioria de nós, imbuídos nesse sentimento, nos atiramos às compras e torramos nosso precioso décimo. Que beleza o Natal, essa colcha de retalhos. Do cristianismo, o sentimento de que podemos ser melhores que no resto do ano. Do paganismo, a data. De uma propaganda da coca cola, o bom velhinho. Adicione umas luzinhas coloridas e cintilantes e uma dose cavalar de consumismo desenfreado e pronto, estamos todos que é só amor ao próximo. Pelo menos no Natal.

Vez por outra um vem e diz que Natal tinha que ser todo dia. Pensa no porre. Aquelas propagandas extremamente chatas e repetitivas na tevê, no rádio, na rua. Decorações de gosto duvidoso nas casas, nas lojas. Amigo-secreto todo mês e você todo mês ganhando presente que, na maioria das vezes, odeia. Que bom que é só por esses dias essa maçada. Em janeiro estaremos todos livres de toda essa quizumba, embora estejamos presos à quitação das dívidas adquiridas na tentativa de mostrar o quanto somos bons.

Mas devo admitir que isso de festividades natalinas não é de todo mau. Reunimos a família e os amigos, nos reconciliamos e tomamos uns aperitivozinhos, para a conversa fluir melhor. Casa de bamba, sabe como é. Um churrasquinho vez ou outra não faz mal a ninguém. Enfim, para não fugir do protocolo, termino este texto desejando a todos um Feliz Natal! Assim mesmo, com letra maiúscula e ponto de exclamação.


quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

Reinício


O mundo está a acabar no calor. As calotas polares não resistirão muito tempo. Esse lixo infernal que não pára de aumentar. A poluição e tudo o mais que já estamos calvos de saber. Merda de humanidade. Cá estamos feito gafanhotos. Gafanhotos, isso sim. Corja imprestável que só serve pra defecar no planeta. E ainda nos dizemos imagem e semelhança de uma entidade superior que teria criado isso tudo por aqui. Ora, tal entidade teria que ser muito distraída para, após fazer as maravilhas que fez em cinco dias, cagar na retranca, criando essa especiezinha ordinária, da qual faz parte este que vos escreve.

Fico a imaginar – e aí está minha diagnose, imaginar demais – o Criador de todas estas outras belas coisas, após ver que tudo era bom, fazer titicas como nós. Imagine a terra zero km dando sua primeira pirueta em torno do sol, e a sexta em torno de seu próprio eixo. Aquele que a tudo criou, pega um bocadinho de barro, assopra e pronto. A bosta está feita. Sem contar que depois deu a este primeiro exemplar uma esposa, permitindo-o se replicar. Grande vacilo do grande cara.

Agora imaginemos que Ele tivesse outra coisa pra fazer. De repente mudasse de idéia no exato momento de dar-nos a baforada vital nariz adentro. Sendo onisciente, que é a qualidade que Lhe atribuem de saber de tudo, até o que ainda não foi, teria Ele um vislumbre da grande praga que seria a humanidade. Aos rodopios, feito uma bailarina louca, estaria o nosso querido planeta livre de nossa nefasta presença. Inteirinho da silva até hoje, com toda a sua face imaculada.

Mas não, que brincadeira sem graça essa de tudo correr as mil. Que coisa mais chata a anjaiada coçando as asas, sem nada pra fazer, sem a quem cuidar. E tem outra, os animais felizes estavam nem aí para o Criador. No jardim, passeava Ele, resplandescente, e ninguém Lhe dava bola. Daí criou-nos para, segundo preconizam por aí, adorá-Lo. Baita bobeira. Antes deixasse como estava. Inventasse a rede então, seria mais útil. Ficaria sesteando de boa sob a árvore da vida, balançando-se de lá pra cá, de cá pra lá. Uma maçãzinha de vez em quando, pra adoçar o bico. Daquela que não era pra ser comida.

Porém, quem sou eu pra questioná-lo? Como poderia, da infinitude de minha ignorância, perscrutar a mente Dele? Onde eu estava quando fez a terra e fincou o pilares do céu? Eu não sei, mas se estivesse lá, no dia seis, e o encontrasse com seu bonequinho de barro, prestes a sobrar-lhe as ventas, eu O impediria. Não deixaria criar essa arma ambulante de destruição que aí está. Assim, jamais estaríamos aqui, mas o planeta estaria a salvo.

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Circular


Um o sexo: menino ou menina. Menina roupas rosas, menino roupas azuis. Que a menina sente-se de pernas cruzadas, e não mexa lá. Ao menino é permitido sentar de pernas abertas. Olha o pintinho dele, saiu ao pai.

À menina, bonecas, e ao menino, carrinhos. Ao menino, futebol, pipa, capoeira. Menina, ajude a mãe a lavar a louça. Vamos logo com essa vassoura que o pai chega e não vai gostar dessa bagunça. Já arrumou seu quarto então arrume o de seu irmão também.

Tem festinha? Ao menino o refrigerante, à menina os salgadinhos e doces. Alegremente faz bolinhas de brigadeiros orquestradas pela diligente mãe. Olha que prendada essa menina nos saiu, hem. Precisava ver os pastéis.


Ah! que bacana, chegaram ao ensino médio, e o menino tá no time de futebol de salão. A menina é o orgulho da mãe, dá aula na escolinha dominical da igreja. Uma santa essa menina.

Adolescentes agora os dois. Hormônios, puberdade, coisa e tal. Menino tem que pegar por atacado. Cuidem das cabritas que meu bode está solto, papai orgulhoso. Menina, menina, que qué isso de namorar o quê, ainda mais nessa idade. Cheio de sem-vergonhas por aí. Experimenta então, pra ver se não te dou umas boas palmadas. Ainda sou sua mãe, não se esqueça. Filha minha ninguém passa na cara.

O menino deu de beber agora, pode? Esses bailes varam a noite. Ele tem só dezessete. E ainda vai de carro. Sem juízo de tudo, mas não sei quem é mais, se ele ou o pai. Mas tá fazendo carteira já. Dia desses tinha preservativo no bolso do danado. Pegador. Não falei que saíra ao pai?

Uma e meia da manhã, vê se pode. Uma menina até uma hora dessas na rua. Aniversário o cacete. Espera só seu pai saber dessa. Só guaraná é? Vai pro seu quarto agora e só me apareça quando tiver uma desculpa convincente. Onde já se viu, a gente ralando pra dar o melhor pra você e seu irmão. Não quero saber. Quarto já.

Faculdade. Menino direito. Herdará o escritório do pai com toda a clientela. Sem contar o nome já feito na praça. O cara. Professora a menina, já vai pro segundo ano. Professora, sonho da mãe, coitada. Parou de estudar pra casar com o pai. Melhor coisa, minha filha: independência. Não faça como eu fiz e... seu pai tá chegando, depois falamos.

Casados. A filha casou virgem. Orgulho. O menino experiente. Namorador que só ele, vai ser difícil se habituar ao casamento. Mas seu pai não se aquietou quando casou comigo? Então.

Que venham os netos. Muitos. Netos. Ah netos... Menino ou menina. Menina roupas rosas, menino roupas azuis.

Ausência

Eu não preciso
de você
sem você
minha vida
transcorreria
normalmente

Eu não sou louco
por você
eu não sou louco

viveria
sem você
sem problemas

Não me importo
de chegar em casa e
não ter ninguém
até prefiro

Assim
assisto
que eu quero
a hora que eu quero
do jeito que eu quero
Se eu quero

Posso ler mais
pensar mais
escrever mais

Sem você eu até posso
dormir

Só não posso
sonhar



:(

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Insegura

-Ai, cuidado com isso aí...
-Calma, vou colocar só a ponta, se doer, você fala.
-Tá, mas não mete de uma vez isso aí hem.
- Não, só a ponta basta, é rapidinho.
- Rapidinho, da última vez ficou meia hora em cima de mim com esse troço aí. Chega fiquei dormente...

Tempo.

-Pronto, terminei, deixa eu tirar agora e...viu, nem doeu. Deixa eu ver o buraco. Abre mais um pouco. Hnm, acho que vai precisar de uns pontos.
-Pontos? Aiii, ferrou...
-Nada, só um ou dois, não mais. Perigoso infeccionar se não. Pronto.
-Hnmm, posso descer da cadeira?
-Ok, pode. Sexta feira então, não esquece.
-Daí o doutor aproveita e mexe no outro dente também né?

Ad eternum



Coisa que sempre me intriga é a hipótese de que um dia viveremos eternamente. Perturbadora. Primeira questão que inevitavelmente me ocorre é sobre o que faremos com todo esse tempo. Eterno seria sinônimo de chatice, marasmo eterno?

As religiões, em sua maioria, têm acenado aos seus pretensos fiéis a possibilidade de viverem para sempre, caso consigam seguir determinada cartilha. Em troca de obediência e alguns trocados, ou muitos, você poderá, ao findar aqui sua existência, ter direito a uma passagem só de ida para as hostes celestiais. Mas tens que seguir a cartilha e é aí que a coisa complica: alguns pecados são simplesmente impossíveis de não se cometer.

Algumas crenças dão conta de que viveremos apenas enquanto espírito, só nossa alma será reciclada, pois nosso corpo é pó e a este há de retornar. Outras afirmam que o duo alma-corpo irá usufruir juntos o prêmio advindo da obediência. São muitos os pontos divergentes, exceto um: eternidade.

Estamos fadados a ela, bradam as religiões. Nos espera com seus lábios entreabertos, sedentos de nossa presença. Um dia estaremos cara a cara. Seja só conteúdo ou também continente, um dia nossos caminhos se cruzam. O que fazer com ela quando esse dia chegar? Assim na terra como no céu? Seremos recolocados em nossas antigas funções e continuaremos camelando infinitamente?

Eu não me ocupava com estas conjeturas. Não me assombrava este fantasma que agora arrasta correntes pelos cômodos de minha cabeça. Eternidade o que será? Me aventuro feito uma gota dágua tentando entender o oceano, ou um cego perquirindo a natureza da luz. Mesmo assim, me atiro a esses pensamentos.

Necessário é nessa viagem deixarmos as nossas tralhas, despindo-nos de nosso corpo. Esse amontoado de pele e ossos que nos permite interagir com esse mundo é nos dispensável no outro. Depois buscaremos entender como se processaria essa eternidade, partindo de nossa compreensão de tempo.

O tempo, como o conhecemos, só existe aqui no nosso planeta. Tudo em termos de tempo é relativo aos movimentos da terra, da lua, do sol. Um dia, um mês, um ano. Existem frações de tempo infinitesimais usadas na física quântica ou nuclear. Não nos ocupemos delas, pois escapam da compreensão mais comum de medida de tempo.

Temos hora pra tudo. Comer. Dormir. Acordar. Trabalhar. Comemos para manter as energias de nosso corpo. Dormimos para descansá-lo. Acordamos para pô-lo em movimento, ou atrofiamos. Trabalhamos para sustentá-lo. As nossas energias são gastas tentando manter o nosso elo com essa esfera em perfeitas condições. Mas um dia a engrenagem pára, a máquina emperra. Por mais que a azeitemos, um dia pifa. A fruta amadurece, de podre cai. Há de se enterrar bem fundo, que o animal fede.

Agora venha comigo em direção ao infinito. Vamos para fora da Terra, fora de nosso sistema solar, fora de nossa galáxia. Estamos a zilhões de quilômetros dessa bolinha azul suspensa a orbitar uma estrela, e eu pergunto: o que é o tempo? Lembre-se, não podemos nos fiar dos movimentos de nosso agora longínquo sistema solar. Todas as referências que tínhamos não nos servem mais. Esqueça a ciranda centrípeta dos astros. Não precisaremos dormir, logo não precisaremos acordar. Nos alimentaremos da energia dos cosmos ou de outra coisa que o valha.

Considerando a hipótese de que somos almas aprisionadas num corpo, a eternidade seria libertação. Seria conhecer a verdade. Libertar-se é saber a verdade, embora algumas verdades não devam ser ditas.

Aí teríamos eternidade: ausência de tempo. Nada de segundos, minutos, horas, dias... Não pararíamos o tempo, apenas estaríamos a salvo de seus efeitos destrutivos. O tempo não cura, ele corrói, dilacera, maltrata. Desfaz. Fora do tempo, em algum lugar atemporal gozaremos as delícias imperecíveis, que nos acenam lá de onde o tempo é nada. Adeus, esferóide anil. Adeus senhores credores, passem amanhã.

Mas pode guardar as giletes que isso aqui não é um convite ao autocídio coletivo, antecedido pela a promessa de nos encontrarmos em algum lugar paradisíaco no universo. Nem vai parar de comer, dormir, acordar, trabalhar... que é isso que temos agora. 

O mais é só especulação de uma mente insone. 


:)





domingo, 13 de dezembro de 2009

Ciúmes

- Precisava dançar daquele jeito?
- Que jeito?
- Ah não se faça de besta...

Esse caso era recente, mas já era muito intenso. Trabalhavam na mesma repartição e eventualmente se reuniam depois do expediente pra discutir alguma coisa. Depois ainda uns drinques, que ninguém é de ferro.

-Eu vi bem a maneira como você se esfregava...
-Mas é uma festa, querida, as pessoas dançam e...
-Mas não você, não assim. Podia ter pelo menos um pouco de consideração comigo.

Conversavam de tudo um pouco. Soube que ela era solteira e não gostava de se envolver. Morava sozinha, se virava. Os homens em geral são todos uns tolos possessivos, disse. E as coisas foram acontecendo. Quem sabe essa amizade não poderia evoluir pra algo mais, ela perguntou. Falou a ela do casamento, dos filhos, que não estava em questão abrir mão de nada. Um casamento de muitos anos, uma vida estável. Um filho e uma filha. Intocáveis.

-Então vamos fazer assim, voltamos pra festa, eu não danço mais. Invento alguma desculpa, mas vamos voltar. Já, já darão por nossa falta.

Cenas de ciúme não eram hábito. No geral, ela era bem tranqüila.

- Vamos, vamos então – abriu a bolsa, espelhinho, batom, ajeitou o cabelo – ah, tem mais uma coisa...

- Que é? – sempre tinha mais alguma coisa.

- Fala para o seu marido parar de me secar, por favor. Cara indiscreto, credo...

- Tá, tá. Agora vamos que minha filha já tá me ligando...

sábado, 12 de dezembro de 2009

Roça

Dentes de alho pra curar lombriga

Trapo queimado no machado pra curar boqueira

Rastro do pé direito quadriculado na cinza pra curar cachumba

Folha de mamonas com óleo pra curar furúnculos

Três pulos com o pé esquerdo pra curar soluços

Lavar os olhos com xixi e fumo pra curar conjuntivite

Folhas em cruz sobre um corte pra curar hemorragia

Pó de café pra curar ralões de tombos

Farinha pra curar dor de barriga

Cidade pra quando nada disso adianta



sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Onírico

Era manhã de um dia daqueles em que chove durante a madrugada. Era uma manhã dessas bem amenas. Terra molhada. Reuniu a família, tinha algo a dizer. A esposa ao lado, no mesmo banco de madeira, as crianças no chão. Tivera um sonho. Na verdade, uma revelação. Ele soube. Foi-lhe contado em sonho, neste sonho: morreria.

Não pareceu sério, a princípio. Silêncio, ele olhou para o chão. Depois olhou os filhos. Lágrimas nos olhos. A voz não saiu, as mãos tremiam. Morreria. Às suas lágrimas se juntaram outras lágrimas. Esposa. Filhos. Morreria.

Falou o sonho.

- Estava em um lugar muito bonito. Uma névoa. Muita luz. Bonito o lugar. A princípio não via nada. Depois ouvi alguma coisa. Uns vultos. Alguém se aproximou. Minha mãe...

Recentemente a avó dos pequenos tinha falecido. Agonizou por alguns dias até que ele chegasse. Quando entrou no quarto onde sua mãe estava, moribunda, ela sorriu. Pela primeira vez depois que caíra de cama, sorriu. Filho, você veio, disse. Em minutos expirou. Sua mão entre as dela, frias e pequenas. Dedos magros, gravetos secos. Esperou-o por dias. Não se foi enquanto não o viu.

- Minha mãe se aproximou de mim. Estava linda ela, toda de luz. Não era tecido sua roupa. Era luz. Perguntei onde estava. Ela não me disse que lugar era aquele, mas disse que eu logo estaria ali com ela. Pediu que eu preparasse vocês. Que eu avisasse...

E pôs-se a distribuir conselhos a todos. À esposa que não se dispusesse dos filhos. Que eles se cuidassem mutuamente. Os mais velhos dos mais novos e estes dos mais velhos. A mãe deveria ser cuidada por todos e a todos cuidar. O saxofone ficaria com o menorzinho.

Estragou a manhã que tinha tudo para ser um belo começo de dia. Estragou a semana. Estragou. Perda total. Irreparável.

Um dia, não muito depois desse em que tivera o sonho, deu uma chuvarada a noite. Uma árvore caiu e seus galhos obstruíram o caminho que ia da casinha à roça. Ele foi passar e quando ergueu a perna para pular os galhos, estourou-lhe a hérnia que a tempo o incomodava. Dor, muita dor. Foi chamado alguém que tinha um carro para que o pudessem levar. O carro veio, ele adentrou-o. Lembrou-se do sonho. Daquele sonho. Disse que não o esperassem. Despediu-se, lágrimas. Mais lágrimas. Não o esperassem. Não ia voltar. Tinha certeza de que morreria.

O motorista ainda tentou brincar:
- Fala bobagem não, que isso não é nada. Rapidinho você estará de volta, vai ver. Hoje em dia tem muito recurso – e ele se foi.

Dali uns quinze dias ele voltou.

Estava morto.


quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

Posteridade

De todos os animais terrestres, os da espécie humana são os únicos que tem consciência da efemeridade da vida. Sabemos logo cedo que, em algum momento indefinido, deixaremos esse plano terrestre. Ou para o descanso eterno, aguardando um juízo final, como crêem alguns, ou para acordar em outra vida, como o querem outros. Mas todos concordam na finitude dessa matéria, embora acreditem na subsistência da alma. Essa cápsula de carne e ossos que envolve nosso espírito um dia vai entrar em colapso. Um dia vai nos deixar ou nós a deixaremos, como queiram.

Diante de tal assertiva, desde os tempos imemoriais o ser humano se preocupa em deixar uma marca de sua existência para as gerações vindouras. Não falo da procriação, de deixar uma prole que apenas leve o nosso nome. Falo de marcas indeléveis de nossa passagem por esta esfera. Nossos bisnetos mal se lembrarão de nós, talvez nem cheguem a nos conhecer. Mais ou menos dez anos depois de morrermos, nossos filhos se esquecerão de como era o timbre de nossa voz. Se não tivéssemos o artifício da fotografia, em pouco tempo sequer lembrariam de nosso rosto.

Assim, em algum momento da história humana alguém pensou nisso, de deixar um rastro, um sinal. E em alguma caverna escura e úmida, empunhando uma tocha, começou-se a grafar sinais e a fazer desenhos que retratavam coisas corriqueiras de seu tempo, e esses desenhos chegaram até nós. Vários são os sítios arqueológicos onde se pode encontrar esses grafismos. Essas pessoas conseguiram sobrelevar-se a própria existência.

Hoje os tempos são outros, a escrita evolui e as maneiras de executá-la também. Só não mudou esse desejo driblar o nosso inevitável sumiço na noite dos tempos. Não escrevemos em cavernas, com lumes em riste, a pictografar paredes de pedra. Diante de uma tela, as letras enfileiram-se sob nosso comando, formando palavras, frases, textos inteiros...

Sabemos que estas linhas não irão tão longe, nem perdurarão por tanto tempo. Mas como é bom o devaneio de se achar que aqui vai a nossa marca na parede rochosa da existência.


Sempre feliz





Não, não falo de mim. Se bem que não me considero uma pessoa triste. Mas não é sem um sorriso de canto de boca que eu vejo essa expressão a frente dos nomes dos usuários de msn e orkut da vida. "Fulano de tal sempre feliz..." Não que eu duvide que as pessoas sejam felizes, nem quero negar-lhes o direito de propagar isto, mas no fundo, no fundo, eu creio que quem é feliz não fica por aí dizendo isso aos quatro ventos.

A felicidade, quando a encontramos, guardamos-a sob sete chaves. É aquele tesouro que partilhamos só com quem nos é realmente interessante. E como um tesouro, não espalhamos por aí em outdors que a temos. Ninguém põe uma placa em frente a própria casa dizendo o que tem ali de bom. A felicidade é uma coisa íntima, é para os de casa, para os amigos... é aquele prato delicioso que partilhamos com os nossos. Não há de ser banalizada, estampada por aí, principalmente porque é muito rara.

Não ouso aqui fazer uma distinção entre a felicidade e a verdadeira felicidade. Felicidade é uma só. E sempre é verdadeira, ou não é felicidade. Tal distinção não é necessária.

Mas ai das pessoas tristes, que precisam aparentar que são felizes e trazem na face um sempre alegre sorriso. Falso, mas alegre. Pessoas cujos olhos opacos deixam transparecer um pesar, uma angústia. Estão aprisionadas em uma prisão da qual é lhes impossível fugir, posto que é interna. Elas não estão na prisão! Pior! A prisão está nelas.

E quando a adicionamos em nosso msn, não podemos deixar de sorrir, amargamente, ao ver lá um "Fulano de tal, sempre feliz".