quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Aquela manhã de 86


Naquela manhã de um dia de fevereiro de 86 ele acordou sentindo-se melhor. O sol adentrava o quarto onde convalecia. Cinco dias já. Agora a primeira melhora. Sentou-se na cama, espalmou a mão no peito, pressionou... estava melhor. Cinco dias, cinco longos dias. Se animou: era dia de visita! Provavelmente ganharia alta e iria com a esposa para casa lá na chácara. Que alegria dos meninos ao vê-lo chegar bonzinho da silva. Levantou-se, sentiu alguma tontura - talvez por causa dos remédios, talvez fraqueza mesmo – e deu dois passos. Parou e inspirou o ar, bem fundo. Estava bom. Aleluia.

            Mas sentiu uma pontada aqui embaixo, na boca do estômago que foi subindo, transformando-se numa queimação no peito, ao mesmo tempo em que as vistas escureciam. A garganta fechou como que por um laço. Na boca um amargor. Uma tonelada a cabeça. Tonteou e caiu aos pés da cama, com os olhos arregalados voltados em direção a porta. A enfermeira da manhã encontrou-o assim. Abaixou-se, pôs dois dedos sobre a jugular dele e constatou o óbito.  A esposa levou para casa naquele dia, como ele havia imaginado. Mas não teve alegria de meninos, não teve. Não teve graça.
            Quem for ao cemitério da cidade não encontrará seu jazigo. Ele foi sepultado ali, próximo a capela, onde tem várias covas sem denominação alguma. Uma delas pode ser a dele, mas qual? A família não colocou nenhuma cruz. Não foi feito nenhuma alvenaria para marcar o lugar. Enterraram-no e o esqueceram.
            Vai para mais de vinte anos, quase vinte e cinco. Enquanto observava aquele quadrante onde ele provavelmente foi sepultado, inevitavelmente imaginei a mim mesmo ali, sob a terra úmida. Quantos planos naquela longínqua manhã de fevereiro de 86 e isto: uma cova sem nome. Um sepulto anônimo, esquecido.
            E você? E eu? Vinte e tantos anos após nosso passamento, que restará de nós? Estará alguém a olhar um jazigo sem nome também, onde formos sepultados? Alguém se lembrará?
           
            Vinte anos, quase vinte e cinco...

quarta-feira, 17 de março de 2010

Tevê



Muito se tem falado da burrice do povo, a qual se atribui o péssimo hábito de preterir as coisas boas às ruins. Então se aproveita o embalo para pôr a culpa nos meios de comunicação para, enfim, culpar a televisão. Sim, ela é a culpada por sermos invadidos por tanto lixo. Músicas de má qualidade, programas de mal gosto, informação irrelevante etc. Maldita televisão que a todos emburrece diuturnamente.

Aqui reside um paradoxo: a programação é ruim porque nós gostamos de coisas sem qualidade ou gostamos de porcarias porque a programação é ruim? Por exemplo, esse “reality show” abjeto faz sucesso porque nós gostamos desse tipo de aborto intelectual ou nós gostamos porque faz sucesso? Eles querem assistir a isso, bradam as emissoras. Nós assistimos porque não tem outra coisa, vociferamos de cá.

Tem outras coisas na tevê sim, muito mais educativas, instrutivas e infinitamente mais salutares que a programação das emissoras campeãs de audiência. Está tudo aí, a sua frente, a um clique. Isso. Um clique e optamos por assistir outra coisa em outro canal. Ou desligar a televisão e ir ler um livro. Mas então porque não fazemos isso? Porque nos curvamos perante tanto lixo?

Este é o ponto ao qual se apega o pessoal da televisão. Em uníssono dizem que as pessoas assistem porque querem, porque gostam, pois coisa melhor certamente está passando em outro canal. Ora, se a tevê vive de propaganda, se a propaganda é paga conforme o número de telespectadores que um programa consegue alcançar, logo, procura-se manter a família toda na frente da tevê. Por isso, se é lixo que os mantêm entretidos, lixo neles!

Mas isso exime a televisão de culpa? Justificaríamos assim a enorme quantidade de dejetos levadas ao ar todos os dias? Não, não justifica. Explica, mas não justifica. Sabedora que é dessa queda que temos por coisas ruins, sabedora também de que isso muito nos empobrece cultural e politicamente, não deveria a galera da tevê nos dar o que queremos, não. Olha, eu sei que você gosta de m****, mas eu tenho coisa melhor pra você, deveriam dizer. Veja, isso é útil, é bom, é salutar... e ir empurrando aos poucos, até que estivéssemos acostumados a não ingerir mais essas porcarias.

Deveria-se pensar na função social da programação televisiva. Aliás, deveria-se fazer cumprir o disposto no art. 221, inciso I, de nossa Constituição Federal: "A produção e a programação das emissoras de rádio e televisão atenderão aos seguintes princípios: I - preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas".  Quem sabe assim, fazendo valer a força da lei, os meios de comunicação priorizariam o fomento da educação e cultura do povo. Mas pensa-se apenas no dinheiro. Quanto mais gente na frente da tevê, melhor para os bolsos das emissoras. Lixo neles de novo.

De nossa parte, podemos protestar de uma maneira bem simples e eficaz: mudando de canal. Ou ainda, desligando a tevê. Nos desligando da tevê. Um a um, os televisores do país seriam, aos poucos, inutilizados. As audiências caindo vertiginosamente. Estancaríamos em nossas salas o desemboque da podridão televisiva. Se o que eles querem é que fiquemos assistindo essas porcarias todas, nosso protesto será não as assistirmos mais. Desempoeiremos nossos livros. Desenferrujemos nossa mente.

Façamos um novo tempo.


segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Xis

Folheando o livro didático de minha filha pude observar a letra xis quando manuscrita em maiúscula. Da base da linha subimos a ponta da esferográfica em forma de meia lua, descendo novamente, e de novo subindo, em outra meia lua, espelho da primeira e temos um xis. Duas meias luas que se tocam. Achei legal nem sei porquê. Isso foi a umas duas horas e de lá pra cá tenho pensado no xis. Tenho pensado em sua polivalência. Um camaleão esse xis.

Por exemplo de sua versatilidade, vejamos os nossos amigos cientistas. Quando descobrem uma nova substância, a qual ainda não tiveram tempo de dar um nome definitivo, do que a chamam? Eis que descobriram a substância xis. Pra que serve tal substância? Ora, ainda não sabemos, mas provavelmente terá xis utilidades.

Sim senhores, temos aí mais uma das ocupações do nosso amigo xis: quando não sabemos quantificar alguma coisa, dizemos que tal coisa tem xis unidades. Não pude deixar de lembrar das equações polinominais onde nos pedem, na maioria das vezes, que descubramos o valor de xis. Lembro-me de um infeliz episódio onde a nobre professora substituiu o xis por outra letra qualquer. Surpresa por receber as questões em branco de determinado aluno, deste ouviu, estupefata, a justificativa de que o jovem só sabia resolver equações com xis. Não sabia equacionar com outra letra.

Agora temos uma avalanche de filmes inspirados em quadrinhos de super heróis. E umas das franquias de maior sucesso é a dos X-men. Olha aí o nosso amigo xis! Wolverine, um dos mutantes a alcançar mais prestígio entre os cinéfilos, é chamado de Arma X. Arma xis. O professor que tenta encaminhar os mutantes é o professor X. Pensa que chato seria se a arma fosse a Arma B, ou P. Como o xis lhe ficou bem, não é?

Falei logo lá no começo da sinuosidade da letra xis manuscrita, e logo ali em cima, dei-me conta da impetuosidade desta em caixa alta. X. Duas linhas diagonais que surgem da base de um quadrilátero imaginário e se cruzam de forma que todas as hastes a partir da interseção de tais linhas tenham o mesmo tamanho. Ufa!

Na hora da foto, lá está o xis, que todos pronunciam para o sorriso ficar bonito. Experimente dizer um A na hora da foto, ou um O. Não dá, tem que ser o xis.

Metido que só ele, sempre está no xis da questão. É o ponto crucial, é o nó que desatará todos os nós, é o xis. Resolvido este, o resto é fichinha. Colocado entre dois números, os faz multiplicarem-se um pelo outro, tanto faz a ordem em que isso ocorra. AxB. A vezes B. Entre dois lutadores, transforma-os imediatamente em adversários. AxB. A versus B. 

Em se tratando de cartografia, lá está ele, indicando o lugar do tesouro. Porque não o fazem com um D ou um U, sei lá? Não, tem que ser ele, o xis.

Quanto a mim, dos textos que escrevo, vou marcando com um xis os que já publiquei aqui no blog. Ao fazer compras também uso e abuso do xis; ao marcar os bingos da vida por aí, idem.





E nos contratos? Sempre tem alguém que faz um xis onde é para a gente assinar. Tem gente que já imprime o contrato com o xizinho lá, estrategicamente localizado. Por favor, estou te mandando uns papéis. Assine onde estiver um xis.


Ah, lembrei-me de um cabra que ficava ofendido quando faziam um xis onde ele tivesse que assinar. Achava que era um insulto a sua capacidade de discernimento. Então, sempre que era preciso mandar-lhe algum papel para que assinasse, eu fazia um xis em negrito, sublinhado, itálico... e em vermelho. 

domingo, 31 de janeiro de 2010

Menino


Na serraria, todo sábado era dia de pagamento. O menino começara naquela semana e iria receber pela primeira vez. Era seu primeiro emprego, aos doze anos. Ganharia  alguns cruzeiros por semana, menos que a metade que pagavam a um adulto. 

Mas ele já tinha olhado lá na mercearia o que dava pra comprar: uma bola dente-de-leite e um carrinho de plástico, com rodas de verdade. Não se desfaria de seu caminhãozinho de madeira com cabines e molejos de lata de óleo e pneus recortados de chinelos. Carrinho e bola ele não tinha não.

Viu outros carrinhos de metal que abriam as portas e o capô, mas eram muito caros. Viu também bolas em couro, mais caras ainda que os tais carrinhos metálicos com portas e capôs móveis. Iria de dente-de-leite mesmo e carrinho de plástico.

Recebeu e se mandou para a mercearia, dali a pouquinho já estava no portão de casa. A mãe fazendo o almoço no fogão a lenha que ficava num puxadinho encostado na casa de madeira. O menino entregou a ela a sacola com o resultado de sua semana de trabalho.
  
A mãe apanhou a sacola. Não estavam ali a bola nem o carrinho que ele dissera que compraria: ali estavam um frango e um quilo de batatas.




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terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Renúncia



Olho à frente e não vejo o futuro. O hoje é o passado de amanhã: vivemos no pretérito. Hoje colhemos as decepções e amarguras de tudo o que poderíamos ter realizados e não o fizemos. Deixamos para depois, sem perceber que o depois é agora. Estamos no depois. Depois de tudo o que passamos, depois de tudo o que passou por nós. Todas as oportunidades desperdiçadas. Tantos sonhos mortos, meu pai.

Em que momento renunciamos e nos deixamos arrastar pela vida cabisbaixos, pensativos no que poderia ter sido, e não foi? Parece-me que morrer não é deixar de viver. Morrer é, antes de tudo, deixar de sonhar, que antes de ser uma morte, é uma traição: é trair-se a si mesmo, condenando-se a morte todos os dias.

Somos uma ala de sonhos terminais. Moribundos, eles nos olham desesperados enquanto levamos a mão para, friamente, desligá-los de tudo o que os mantém ainda vivos. Morram, malditos, morram e não nos pertubem mais com essa estória de futuro promissor. Promissor o cacete, para o diabo que os carregue, infelizes. O futuro chegou e continuamos a nos arrastar, almas penadas que somos. As feridas não cicatrizam com o tempo, apenas infeccionam, doendo ainda mais. Que não nos ofereçam analgésicos, pois é a nossa dor! Não permitamos que até isso tirem de nós.

Em uma vala qualquer de um terreno baldio, os abandonamos. Sonhos bastardos, mutilados, infelizes. Bestas deformadas a nos povoar os pesadelos. Ainda respiram, mas pouco importa. Aí vem chuva, que morram afogados... que um raio lhes caia na cabeça. Não poderão mais nos importunar, não hoje, não agora.

No próximo bar, pedimos uma cerveja. Não precisamos mais olhar à frente. Acabou. 






quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Ordinário

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Lendo o texto anterior, não pude deixar de lembrar do adjetivo “ordinário”, que também é considerado pejorativo, mas que a princípio, significava habitual, que não fugia a ordem normal das coisas. Hoje é usado mais num sentido depreciativo. Quando se quer dizer que algo é de baixa qualidade, ou sem nenhuma, diz-se que é ordinário. Habitual, ordinário, ruim, desqualificado. Um passo a frente quem quer algo mais, buscando sempre o extraordinário, o fora do lugar comum.


A palavra chave é essa: comum. Não queremos um tratamento comum, não queremos coisas comuns. Vidas comuns. Não aceitamos ser pessoas comuns. Não queremos ser ordinários. Queremos ser mais.


Mais uma palavra que se transformou com as mudanças de perspectiva de nossa sociedade. O comum, usual, não basta. Perde o valor o homem comum, com suas expectativas comuns a outros homens igualmente comuns. Abaixo a rotina de querer as mesmas coisas, ter os mesmos sonhos. Fora com o cotidiano de nosso torpor existencial. Que não nos cubram as cinzas de uma vida sem glórias nem derrotas. Uma vida ordinária, onde todas as coisas estejam exatamente nos mesmos lugares que estão em outras vidas igualmente ordinárias.


Mas para romper essa barreira também não é fácil. Suplantar tal obstáculo, exceder às expectativas, buscar pelo extraordinário e o encontrar. Árdua batalha, mas entre manter-se em pé e lutar e deitar-se e fazer força para morrer, escolhamos a primeira opção.


Garantia nenhuma nos é dada de que conseguiremos algo além do comum e esperado. Talvez em vão nos debateremos por uma vida para, ao fim, ver que fomos exatamente o que poderíamos ser, sem nos superarmos em nada. Veremos então que apenas seguimos a banda, dançando conforme a música, sendo apenas o que foi nos permitido ser.


Uma pena.

domingo, 10 de janeiro de 2010

Medíocre



A palavra medíocre em sua concepção original, significava o que está no meio. Nem pra mais, nem pra menos, mediano: medíocre. Creio eu que num primeiro momento não tinha essa carga pejorativa que tem agora. Medíocre hoje não é mediano: é ruim, fraco, incapaz. Não está mais na média, está lá embaixo, no fim da fila. Em nossa sociedade individualista, busca-se o algo mais. Deve-se estar um passo a frente, do meio pra frente, sempre. A média hoje não basta.


Falando em média, veio-me a cabeça o sistema de avaliação das instituições de ensino, onde é estipulada uma média que os alunos devem alcançar. A nota vai de zero a dez, e a média não é cinco: é seis; ou seja, um ponto acima do meio. O aluno é prestigiado a medida que se afasta dessa média em direção ao dez.


Ir contra a mediocridade é remar contra a maré. O comum e natural do ser humano é ser medíocre. O profissional, o pai, o filho e o espírito medíocres. Insurgimo-nos contra isso na ânsia de não nos deixar sufocar pela opacidade de nossa pequenez, rasgando esse véu que nos obstrui a visão, que é feito uma âncora, puxando-nos para baixo. Tomamos consciência de nossa insignificância e fugimos em direção ao que é reconhecido como sendo o melhor. Moldamo-nos a todo instante, sempre numa busca incessante que pode, inclusive, dar em nada.


Mas entre a árdua batalha que pode culminar numa hipotética vitória e o conforto do comodismo, vamos à luta. Todo santo dia e sempre.