domingo, 31 de janeiro de 2010

Menino


Na serraria, todo sábado era dia de pagamento. O menino começara naquela semana e iria receber pela primeira vez. Era seu primeiro emprego, aos doze anos. Ganharia  alguns cruzeiros por semana, menos que a metade que pagavam a um adulto. 

Mas ele já tinha olhado lá na mercearia o que dava pra comprar: uma bola dente-de-leite e um carrinho de plástico, com rodas de verdade. Não se desfaria de seu caminhãozinho de madeira com cabines e molejos de lata de óleo e pneus recortados de chinelos. Carrinho e bola ele não tinha não.

Viu outros carrinhos de metal que abriam as portas e o capô, mas eram muito caros. Viu também bolas em couro, mais caras ainda que os tais carrinhos metálicos com portas e capôs móveis. Iria de dente-de-leite mesmo e carrinho de plástico.

Recebeu e se mandou para a mercearia, dali a pouquinho já estava no portão de casa. A mãe fazendo o almoço no fogão a lenha que ficava num puxadinho encostado na casa de madeira. O menino entregou a ela a sacola com o resultado de sua semana de trabalho.
  
A mãe apanhou a sacola. Não estavam ali a bola nem o carrinho que ele dissera que compraria: ali estavam um frango e um quilo de batatas.




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terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Renúncia



Olho à frente e não vejo o futuro. O hoje é o passado de amanhã: vivemos no pretérito. Hoje colhemos as decepções e amarguras de tudo o que poderíamos ter realizados e não o fizemos. Deixamos para depois, sem perceber que o depois é agora. Estamos no depois. Depois de tudo o que passamos, depois de tudo o que passou por nós. Todas as oportunidades desperdiçadas. Tantos sonhos mortos, meu pai.

Em que momento renunciamos e nos deixamos arrastar pela vida cabisbaixos, pensativos no que poderia ter sido, e não foi? Parece-me que morrer não é deixar de viver. Morrer é, antes de tudo, deixar de sonhar, que antes de ser uma morte, é uma traição: é trair-se a si mesmo, condenando-se a morte todos os dias.

Somos uma ala de sonhos terminais. Moribundos, eles nos olham desesperados enquanto levamos a mão para, friamente, desligá-los de tudo o que os mantém ainda vivos. Morram, malditos, morram e não nos pertubem mais com essa estória de futuro promissor. Promissor o cacete, para o diabo que os carregue, infelizes. O futuro chegou e continuamos a nos arrastar, almas penadas que somos. As feridas não cicatrizam com o tempo, apenas infeccionam, doendo ainda mais. Que não nos ofereçam analgésicos, pois é a nossa dor! Não permitamos que até isso tirem de nós.

Em uma vala qualquer de um terreno baldio, os abandonamos. Sonhos bastardos, mutilados, infelizes. Bestas deformadas a nos povoar os pesadelos. Ainda respiram, mas pouco importa. Aí vem chuva, que morram afogados... que um raio lhes caia na cabeça. Não poderão mais nos importunar, não hoje, não agora.

No próximo bar, pedimos uma cerveja. Não precisamos mais olhar à frente. Acabou. 






quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Ordinário

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Lendo o texto anterior, não pude deixar de lembrar do adjetivo “ordinário”, que também é considerado pejorativo, mas que a princípio, significava habitual, que não fugia a ordem normal das coisas. Hoje é usado mais num sentido depreciativo. Quando se quer dizer que algo é de baixa qualidade, ou sem nenhuma, diz-se que é ordinário. Habitual, ordinário, ruim, desqualificado. Um passo a frente quem quer algo mais, buscando sempre o extraordinário, o fora do lugar comum.


A palavra chave é essa: comum. Não queremos um tratamento comum, não queremos coisas comuns. Vidas comuns. Não aceitamos ser pessoas comuns. Não queremos ser ordinários. Queremos ser mais.


Mais uma palavra que se transformou com as mudanças de perspectiva de nossa sociedade. O comum, usual, não basta. Perde o valor o homem comum, com suas expectativas comuns a outros homens igualmente comuns. Abaixo a rotina de querer as mesmas coisas, ter os mesmos sonhos. Fora com o cotidiano de nosso torpor existencial. Que não nos cubram as cinzas de uma vida sem glórias nem derrotas. Uma vida ordinária, onde todas as coisas estejam exatamente nos mesmos lugares que estão em outras vidas igualmente ordinárias.


Mas para romper essa barreira também não é fácil. Suplantar tal obstáculo, exceder às expectativas, buscar pelo extraordinário e o encontrar. Árdua batalha, mas entre manter-se em pé e lutar e deitar-se e fazer força para morrer, escolhamos a primeira opção.


Garantia nenhuma nos é dada de que conseguiremos algo além do comum e esperado. Talvez em vão nos debateremos por uma vida para, ao fim, ver que fomos exatamente o que poderíamos ser, sem nos superarmos em nada. Veremos então que apenas seguimos a banda, dançando conforme a música, sendo apenas o que foi nos permitido ser.


Uma pena.

domingo, 10 de janeiro de 2010

Medíocre



A palavra medíocre em sua concepção original, significava o que está no meio. Nem pra mais, nem pra menos, mediano: medíocre. Creio eu que num primeiro momento não tinha essa carga pejorativa que tem agora. Medíocre hoje não é mediano: é ruim, fraco, incapaz. Não está mais na média, está lá embaixo, no fim da fila. Em nossa sociedade individualista, busca-se o algo mais. Deve-se estar um passo a frente, do meio pra frente, sempre. A média hoje não basta.


Falando em média, veio-me a cabeça o sistema de avaliação das instituições de ensino, onde é estipulada uma média que os alunos devem alcançar. A nota vai de zero a dez, e a média não é cinco: é seis; ou seja, um ponto acima do meio. O aluno é prestigiado a medida que se afasta dessa média em direção ao dez.


Ir contra a mediocridade é remar contra a maré. O comum e natural do ser humano é ser medíocre. O profissional, o pai, o filho e o espírito medíocres. Insurgimo-nos contra isso na ânsia de não nos deixar sufocar pela opacidade de nossa pequenez, rasgando esse véu que nos obstrui a visão, que é feito uma âncora, puxando-nos para baixo. Tomamos consciência de nossa insignificância e fugimos em direção ao que é reconhecido como sendo o melhor. Moldamo-nos a todo instante, sempre numa busca incessante que pode, inclusive, dar em nada.


Mas entre a árdua batalha que pode culminar numa hipotética vitória e o conforto do comodismo, vamos à luta. Todo santo dia e sempre.